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  • A Pandemia e as consequências da quarentena para o trabalho

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    Foto: Luis Eduardo Tavares

    por: Marta Bergamin

    Os trabalhadores autônomos, o precariado, os desempregados, os que vivem de bicos, já estavam submetidos a um regime intensamente desprotegido de trabalho e de pouco acesso a direitos sociais. A proibição de trabalho que a quarentena representa para muitos nessa chegada da pandemia no Brasil, acrescenta muitas dificuldades à vida já extremamente precarizadas dessa multidão de brasileiros.

    As estratégias contra o adoecimento dessa parte substantiva da população faz parte dos mecanismos produzidos para lidar com a extrema incerteza que a vida autônoma ou do precariado apresenta como realidade. Adoecer não pode fazer parte do cardápio de homens e mulheres sem emprego fixo. O dia precisa ser garantido com o trabalho. Adoecer significa não ganhar o do dia, o dinheiro da semana. Dejours1, psicanalista que estuda as relações de trabalho, descreve essas estratégias para lidar com as doenças como parte do sofrimento do trabalho penoso. Mas para essa classe, é especialmente radical a impossibilidade de adoecer. Esconder doenças, driblar vizinhos, colegas de lida, familiares, para que a doença não apareça se apresenta como a primeira forma de lidar com ela. A doença só aparece quando se precisa ir ao médico, ao hospital e somente, assim, ela é visibilizada.

    Com a chegada da pandemia nos territórios mais pobres do país a doença pega nas estratégias da vida, porque essas estratégias montadas para o trabalho são parte fundamental do cotidiano. Tanto as estratégias partilhadas quanto as estratégias mais individualizadas são formadas para lidar com uma vida sem previsibilidade alguma. Não à toa que no negacionismo criminoso do governante maior do país notamos o reforço por essa estratégia de negação que a Covid-19 seja doença grave. Reforçar a ideia de que existe um grupo de risco e que os adultos devem voltar ao trabalho sem grandes riscos está conectado às estratégias populares de negar-se doente. Negar o medo de adoecer. Simplesmente negar a gravidade para que a gravidade não exista. Os países que adotaram essa estratégia, que teoricamente colocaria a economia em primeiro lugar, mostraram que a dinâmica da doença rapidamente a põe por terra, o isolamento social se mostrou mais eficaz. É preciso parar. Parar as engrenagens do mundo do trabalho tal como a conhecemos.

    Nessa medida, as estruturas do neoliberalismo foram produzindo trabalhadores engajados em um individualismo na sua “viração” da vida, que acabam por levar para a informalidade os padrões de controle, de riscos, de custos do trabalho para si. O auto-controle exercidos pelos trabalhadores autônomos, que estão com todos os custos e riscos do trabalho incorporados como parte do seu “empreendorismo”, entregam o sentido do trabalho à tecnologia (como é a dinâmica dos überizados). A banalização do mal vinda com o aprofundamento do neoliberalismo, diz Dejours (2006), é processada pelo trabalho, pelos valores do trabalho incorporados individualmente2. Cada investida do capital no esvaziamento do sentido do trabalho tem significado um achatamento na renda do trabalho. Desta forma, se trabalha cada vez mais para se ganhar cada vez menos. E o rebatimento disto na subjetividade das pessoas é um sentido do trabalho cada vez mais esvaziado que despersonaliza e quebra esse sentido para uma produção subjetiva forte.

    Com a pandemia há uma parada nas dinâmicas do mundo do trabalho. Ou adaptações estão sendo formadas para lidar com esse momento estranho. Será necessário mudar para que o país cesse de só reproduzir um distanciamento entre pobres e ricos numa crescente desigualdade social.

    No Brasil as reformas trabalhista e da previdência apostaram na informalidade para grande parte da população, o que significa que grande parte dos trabalhadores com rendimentos já muito rebaixados ficarão desprotegidos na vida laboral e na velhice. Com a crise trazida pela epidemia demorou para o governo perceber que os pobres estavam em pauta, a primeira proposta era de suspensão de salários por meses para salvar as empresas a partir dos custos do trabalho. Os pobres só eram foco, até aqui, para se avançar sobre na sua renda, na sua escassa poupança para defender os interesses do grande capital.

    Interessante deixar surgir novas lógicas, novas formas de pensar o que é a vida em sociedade. Viver num mundo comum. A renda básica universal lançada agora em forma de ajuda emergencial para essa classe desprotegida da sociedade é uma dessas intensas mudanças que podem vir para ficar. A ideia de que uma renda universal é uma saída para as mudanças do mundo do trabalho que já tinham chegado definitivas por aqui, e demanda planejamentos de longo prazo.

    Com a pandemia temos uma parada. Uma parada do trabalho nos moldes até aqui processados. A noção de produção do necessário vai mudando a estrutura produção-comércio-dinheiro. Fazer a indústria produzir o que é necessário nesse momento para equipar a saúde com máscaras, luvas, construir hospitais, comida, remédios, maquinários de saúde. Não é mais a lógica inversa que perverte nossas necessidades. Estamos num outro momento em que a necessidade ancora o que deve ser produzido. A lógica anterior criava incessantes fetiches para escoar a produção (produção no final de mais dinheiro – de dinheiro’).

    As mudanças em 2020 vieram mais violentas e rápidas do que estávamos esperando! O esgotamento do neoliberalismo que captura continuamente cada vez mais territórios, pode ganhar planos de modificações. Já tínhamos uma ideia de que as mudanças que o incremento tecnológico estava por impor aos processos produtivos mudanças radicais do modo de trabalhar. Mas não havia preparação alguma para novidades tão contundentes como essa imposta agora pela chegada de um processo mundial que vai impondo uma crise de proporções globais, brutais especialmente aos pobres de todo o mundo.

    O país estava tão despreparado para lidar com a pobreza que não consegue por em marcha com rapidez o repasse de uma renda mensal a quem precisa, não havia nenhuma perspectiva de enfrentamento à desigualdade. A possibilidade de saques de fome e de revolta se configuram como reais forma de luta para quem ficou sempre esquecido para a distribuição da riqueza comum, mas sempre lembrado para manter a economia que interessa ao capital funcionando. E as revoltas populares podem fazer visível as feridas que não se fecham rapidamente. As revoltas chilenas estão no tabuleiro como alerta para despertar as lutas sociais e as reinvindicações que exigem ação para trazer renda às famílias brasileiras quanto falta a possibilidade de trabalho.

    Latour (2020)3, nós provoca a pensar como vamos impedir que essa lógica anterior não venha logo dar as caras assim que a pandemia passar. O tempo do trabalho, se no passado medido pelo relógio de pulso, e até ontem medidos pela velocidade vertiginosa dos smartphones (mesmo os tempos do desemprego andavam totalmente ocupados pelos trabalhos überizados, para lá de precários), agora parou. Desacelerou. A vida tem outras atividades. Fazer comida, cuidar das crianças, arrumar as coisas da casa, trabalhos invisibilizados e destinados às mulheres que podem retornar como tarefas cotidianas com produção de sentido.

    O trabalho continua no centro da vida social. Será tempo de reconfigurar essa centralidade que estava ancorada na retirada de proteção social para os pobres aliada à queda da renda do trabalho nas franjas da sociedade.

    Um momento interessante em que as temporalidades da cidade, guiadas essencialmente pelo trabalho, foram interrompidas para muitos. Foram ao menos deslocadas para a casa. O que certamente exige novas negociações de uma sociabilidade reduzida ao núcleo familiar.

    Que momento estamos vivendo! Uma oportunidade se abrirá depois da catástrofe. Disputar um novo mundo, com novas temporalidades do trabalho. Das ruínas do neoliberalismo sairá um outro mundo! À luta!

    Marta Bergamin é socióloga, professora da Escola de Sociologia e Política.

    1 Dejours, C. A loucura do trabalho, São Paulo: Cortez, 2015.

    2 Dejours, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2006.

    3 Latour, B. “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”. 2020. Disponível em: https://www.tramadora.net/category/zonadecontagio/

  • Anotações sobre a greve abstrata – Toni Negri

    Toni Negri

    (Tradução e síntese de Tatiana Roque)

    A greve era uma abstenção do trabalho por parte dos operários, uma ruptura da relação de exploração que se qualificava como ataque direto à valorização capitalista. Do ponto de vista do operário, contudo, a greve não era só isso, era também algo material, uma ação que devia “fazer mal ao patrão” e que, ao mesmo tempo, colocava em jogo a vida do trabalhador. Havia algo de carnal, de imediatamente biopolítico na greve, uma ação que transformava a ação econômica em representação política, o ato de abstenção em uma prática de deserção do capital.

    Quando a relação de capital é diferente, seja porque o sujeito trabalhador é qualificado de modo diverso ou porque o comando sobre o trabalho é diverso, a greve também deve ser diferente. A greve do operário industrial e do agriculto já eram experiências diferentes. Ainda que cada uma colocasse em jogo a valorização do capital, geravam experiências diversas. A continuidade e a abstenção prolongada do trabalho eram vividas de modo distinto por operários e camponeses, pois para esses últimos, por exemplo, a luta não podia durar tanto (contam que as vacas mugiam desesperadas e a colheita apodrecia). Era preciso, para os agricultores, maximizar o confronto em um tempo breve. Já para os operários, a temporalidade e a figura da luta eram outras, não eram constrangidos pelo limite da continuidade da abstenção do trabalho, a não ser por necessidade de salário e sobrevivência.

    A greve só é unitária na imagem que o patrão faz dela, para reimpor a ordem sobre a ruptura: ruptura econômica da relação de valorização e ruptura política da subordinação.

    O neoliberalismo se inaugura, nos anos 80, como uma transformação da organização do trabalho, da forma de produção e do controle político sobre a classe operária, como resposta às lutas do operário-massa. As formas de produção se darão, então, pela automação das fábricas e pela informatização social.

    Para avançar nesta análise, será necessário perguntar quem é hoje o trabalhador e quem é o patrão. Começando pelo trabalhador, trata-se de um operário que, como está dentro de uma cooperação cada vez mais intensa, qualifica sua força de trabalho como potência motora do sistema produtivo. É na cooperação que o trabalho se torna cada vez mais abstrato, logo mais capaz de organizar a produção, e ao mesmo tempo mais sujeito a mecanismos de extração de valor: capaz de criar cooperação produtiva e constrito a vê-la extraída (pelo capital) em medidas cada vez maiores. Para chegar a compreender este processo, deve-se insistir sobre o fato que, na relação com a máquina, o trabalhador desenvolve, de modo sempre mais autônomo, a instância cooperativa e, desse modo, organiza a energia produtiva. Assim, não podemos mais falar de “autonomia” do mesmo modo que se falava na fase da subsunção formal e/ou real do trabalho sob o capital.

    Isso porque aqui há um grau de autonomia que não é somente de posição, mas ontológica – uma consistência autônoma, ainda que completamente submetida ao comando capitalista. O que significa estar em uma situação na qual uma iniciativa produtiva contínua – o tempo – e estendida – no espaço – são extraídas pelo capital? A relação entre processo laboral (nas mãos do operário) e processo capitalista de valorização estão hoje separados, o primeiro ligado à autonomia do trabalho vivo e o segundo ao puro comando. Essa mutação significa que o trabalho atingiu um grau de dignidade e força que recusa a forma de valorização que lhe é imposta. Assim, mesmo por dentro da imposição do comando, isso é capaz de desenvolver sua própria autonomia.

    A grande diferença entre os processos laborativos estudados por Marx e os atuais consiste no fato de que a cooperação hoje não é mais imposta pelo patrão, mas produzida do interior pela força trabalho, o processo produtivo e as máquinas não são impostas do exterior pelo patrão. Podemos falar hoje de apropriação do capital fixo pelos trabalhadores e assim indicar, por exemplo, um processo, de construção do algoritmo de conhecimento disposta à valorização do trabalho em cada uma de suas articulações.

    Se as coisas estão assim, é somente abstraindo-se cada vez mais dos processos laborativos que o comando capitalista consegue se exercitar. Não por acaso falamos de “exploração extrativa” da cooperação social, e não mais de exploração ligada às dimensões industriais e temporais da organização do trabalho.

    Nesse tipo de organização do trabalho e da valorização há um papel complexo de “produção de subjetividade”. Por “produção de subjetividade” entende-se, por um lado, produção pela “subjetivação” e, por outro, tentativa insistente de reduzir essa última a “sujeito” comandado. A ambiguidade aqui é aquela que apresentam todas as diversas figuras do trabalho vivo em sua estruturação pós-industrial.

    Em segundo lugar, o que é hoje o patrão? Diante do trabalho cognitivo, o patrão se apresenta como capital financeiro que extrai valor social. Dentro dessa “extração” se dá hoje uma progressiva redução da função patronal da figura empreendedora a uma figura puramente política. A verticalização do comando capitalista deve atravessar de maneira cada vez mais abstrata a relação entre cooperação e processos de subjetivação produtiva – consequentemente, nessa verticalização irá se exprimir um tipo de “governamentalização” do comando, uma tentativa cada vez mais complexa de controlar os mecanismos maquínicos/algorítmicos por meio dos quais o trabalho vivo construiu a cooperação. Nessa perspectiva, o capital financeiro se apresenta como “ditadura” – não ditadura fascista, mas abstração do comando e uniformização governamental na tentativa de fazer valer sua autoridade sobre o processo de abstração. Em suma, fazer coincidir abstração e extração.

    Sobre a nova figura do comando capitalístico, convém distinguir dois aspectos. Já falamos do primeiro: o comando abstrato/extrativo e sua pretensão de recuperar todo o processo de valorização. Aqui se organiza o comando político. Mas, ao lado desse, há outro aspecto: o neoliberalismo é de fato, ao seu modo, constituinte. Ao invés de desenvolver uma atividade de governo que é apenas comando – essencialmente financeiro, mas corroborado por um máximo de força estatal – ele se desenvolve também em rede (com formas plurais de governamentalidade) e age como comando participativo sobre uma ampliada rede micropolítica predisposta a incluir necessidades e desejos. A constituição neoliberal não coleta simplesmente (e extrai valor do) trabalho vivo na sua expressão valorífica, mas tende também a organizar o consumo e os desejos e a torná-los, em sua expressão material, reprodutivos, cooperativos e funcionais à reprodução do capital. É a moeda que, no estado atual do capital financeiro, representa a mediação entre produção e consumo, entre necessidades e reprodução capitalista, que iguala, portanto, e coleta em uma mesma abstração o trabalho que a produz e o trabalho que a consome. Será possível atravessar esse conjunto complexo reapropriando-se do trabalho que produz e liberando o consumo de sua direção capitalista?

    Quando começamos a falar de “trabalho imaterial”, fomos criticados, e não somente porque dizíamos (impropriamente) “imaterial” quando obviamente todo trabalho é material. Por essa imaterialidade visávamos os atos constitutivos de valores: conhecimento, linguagem, desejos. Hoje não se pode mais desmerecer o fato de que estamos em uma situação na qual o capital identificou totalmente o novo riquíssimo contexto no qual o trabalho vivo se exprime e colocou-o inteiramente sob seu comando. O capital agiu em duas direções. Por um lado, articulou seu comando à produção viva de linguagem; e por outro, opera por meio da funcionalização das necessidades e desejos ao comando capitalista. O capital (no neoliberalismo) quer que a força da subjetivação produtiva se reconheça como sujeito da relação de capital. Quer servidão voluntária. Daí a impotente mistificação produzida, frequentemente, em muitos homens honestos (mas incapazes de exercício crítico): defende-se que o capital é hoje capaz de tornar felizes os dominados. A nós interessa, em vez disso, pensar ainda que existir no capital é necessariamente resistir a ele.

    O que é então a greve abstrata hoje? O que é uma greve que seja medida pela nova natureza do trabalho vivo ou pela constituição neoliberal da produção e da reprodução? O que é uma luta social que tenha capacidade de “fazer mal”, de se mostrar novamente com uma potência material e biopolítica eficaz? Para responder a essas questões, é conveniente insistir sobre dois pontos que não podemos separar, mas que pode ser útil distinguir. Antes de tudo, perguntar se e como o trabalho vivo pode hoje se rebelar e interromper o fluxo da valorização. A resposta a essa pergunta deve retomar inteiramente a tradição da luta operária: ruptura da relação de produção, abstenção, sabotagem, êxodo etc. Mas observando que quando o trabalho investiu na vida, quando se trabalha todo dia fora de qualquer horário, quando a capacidade produtiva de cada trabalhador é retomada dentro de redes de comando, como é possível reencontrar aquela independência de ação (que é exigida pelo “fazer greve”) seja no terreno espacial da cooperação ou no terreno temporal reduzido agora ao fluxo contínuo? Como é possível, por exemplo, ocupar e bloquear a metrópole (tornada produtiva) e/ou interromper o fluxo de produtividade das redes sociais, que não conhece pausa? Aqui a resposta só pode reconduzir àquela composição singular que hoje é representada pela íntima conexão algorítmica entre produção e comando – ou seja, ali onde os trabalhadores constroem relações significativas e produtivas cujo valor é extraído pelo capital. Nesse caso, a greve pode ter sucesso não só quando rompe o processo de valorização, mas quando recupera a independência, a consistência do trabalho vivo ao se tornar ato produtivo. Na greve, o trabalho vivo maquínico rompe o algoritmo para construir novas redes de significação. E pode fazê-lo não somente porque sem produção por parte do trabalho vivo, sem subjetivação, não tem algoritmo. Deve fazê-lo porque sem resistência não há, no capitalismo, nem salário nem promoção social, nem Welfare nem possível gozo da vida. A greve revela o futuro, rompendo com a miséria e a sujeição ao comando. Logo, greve como retomada da tradição operária, mas colocada sobre todo o terreno da vida – greve social. Essa é a figura da greve contra as técnicas capitalistas extrativas do valor de toda a sociedade.

    Mas há um segundo ponto, todavia, talvez mais importante até de ser atacado: aquele onde os processos de reprodução da sociedade se cruzam com o capital financeiro, com a monetização do processo. É aqui claro que há de se romper e reconstruir o mecanismo que lega o consumo à dimensão monetária. O consumo é sempre uma coisa boa quando se sabe consumir em relação com as necessidades de reprodução da espécie – não tanto daquela natural, genericamente humana, mas daquela operária, produtiva, “pós-humana”. É esse tipo de consumo que deve ser tomado como momento de ruptura. Ora, esse é o terreno do Welfare (local de organização do domínio sobre serviços e consumo) que é percorrido como terreno de luta – de exercício de resistência e perspectiva alternativa. A greve abstrata se torna aqui greve materialista. Trata-se de recuperar para o trabalho vivo o comando sobre o consumo e de construir e/ou impor uma “produção do homem pelo homem” e não pelo lucro.

    A greve abstrata, em nível de produção, impõe a recuperação da independência do trabalho vivo para romper o processo de valorização; em nível de reprodução, exige a construção e a imposição de uma nova sequência necessidades/desejos/consumo. É característica hoje a abundância das pesquisas que se empenham na tentativa (e logo exasperam a tensão) de construir espaços de independência laborativa dentro das redes produtivas e majoritariamente investidas pela capacidade capitalística de extração de valor. O renascimento do mutualismo e o crescimento da cooperação nas redes informáticas são somente as primeiras pistas de luta a serem aprofundadas. Sobre o terreno de ruptura da sequência desejos/consumo (e da sua monetização forçada) há forças difusas para criar moeda bit e para construir redes autônomas de comunicação e/ou redes independentes de consumo – tentativas parciais, mas significativas. Sua eficácia não poderá, contudo, tornar-se decisiva se essas iniciativas não se coligarem entre elas e atingirem ofensivamente o ponto crucial sobre o qual a produção capitalística transforma a subjetivação produtiva em produção autocrática dos sujeitos. É evidente que a democracia política é incompatível com a ditadura do capital financeiro. A greve abstrata assume esse pressuposto para indicar uma série de terrenos sobre os quais é necessário intervir a fim de construir uma potência independente que saiba propor e tornar possível um outro mundo democrático.

    Para terminar. É claro que a greve contra a extração de valor e a greve que se move à altura da abstração capitalista pela exploração social não são a mesma coisa. No primeiro caso, de fato, a luta é direta pela apropriação do lucro (a sua distribuição pode favorecer os trabalhadores) e, no segundo caso, é derrubada dos modelos de reprodução da sociedade e da regra capitalista de cunhagem funcional e contextual da moeda – claro que hoje esses dois níveis de luta não são idênticos, mas extremamente ligados um ao outro. Um é horizontal e o outro é vertical. Um é luta pela emancipação do trabalho, outro pela liberação em relação ao trabalho. Mas, do ponto de vista das lutas, não se saberia distingui-los. Nem se pode, todavia, confundi-los e a razão consiste em tudo aquilo que foi dito até aqui: porque um luta e o outro constrói. Devem fazê-lo separadamente, devem fazê-lo junto. Aí está a tarefa a realizar. Até aqui foi a análise, depois vem a práxis. É então evidente que, se o neoliberalismo impõe a ditadura do capital financeiro, a luta pela liberação do e em relação ao trabalho, ou seja, a luta comunista impõe às coalizões de trabalhadores que se batam sobre o terreno horizontal contra a exploração extrativa de saber, mas se alçando também à produção de um projeto alternativo à gestão capitalista – da extração de valor, mas, sobretudo, da medida – da moeda. É aqui que se combate a ditadura. Os companheiros do Syriza hoje, aqueles do Podemos amanhã, é para aqui que eles trouxeram a luta: para o cruzamento entre emancipação do trabalho e liberação em relação ao trabalho. Se conseguirá na Itália construir uma coalizão de trabalhadores tão potente?